terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Sobre ser real (Lígia)

Paul e eu temos histórias parecidas. Ambos crescemos em lares desfeitos, ambos descobrímos a fé ainda moços, ambos temos entusiasmo por arriscar a sorte. Mas ele é mais evoluído em altruísmo, o que sempre considerei uma espécie de brilhantismo emocional. O que quero dizer é que a maioria de nós está sempre preocupada com o que os outros estão pensando. Esta preocupação se infiltra em nossas palavras, nossos atos, sonhos e sentimentos, e Paul parece estar acima disso – ou abaixo disso, não sei. Apenas não é afetado. Ele não se preocupa muito com nada, o que me impressiona como se fosse uma espécie de milagre.
Como uma pessoa consegue deixar de se preocupar com a opinião das outras a ponto de desfrutar delas sem manipulá-las? Como uma pessoa pára de se preocupar com o dinheiro para pagar o aluguel, de onde virá a comida ou se tem ou não um bom plano de aposentadoria? Quando uma pessoa está com Paul, é confrontada com a ideia de que a vida pode ser muito mais fácil do que o resto de nós acredita ser, de que a maioria das coisas com a qual nos aborrecemos não vale o aborrecimento, que uma conta bancária zerada e roupas fora de moda não dão câncer. E é exatamente isso o que às vezes sinto: que um saldo bancário lá embaixo ou uma posição social inferior me dará câncer.
Tendo a pensar que a vida tem a ver com segurança, que, quando você tem um ano de aluguel pago, pode descansar. Preocupo-me demais com as coisas, sobre se minhas ideias estão certas ou não, se as pessoas gostam ou não de mim, se vou ou não me casar, e então me preocupo se minha mulher me abandonará ou não quando nos casarmos. De um tempo para cá, me flagrei preocupado se meu carro estava ou não na moda, se eu parecia um idiota quando falava em público, se meu cabelo cairía ou não, e tudo isso, talvez, porque vivia em Houston, mais de 1,5 mil quilômetros quadrados de concreto, shoppings, mega-igrejas e complexos de cinemas, nada disso real. Quer dizer, isso tudo está lá, é feito de matéria, mas não passa de exagero. Nenhuma das mensagens é verdadeira ou tem qualquer relação com o fato de que estamos girando em um planeta em uma galáxia em algum ponto de um universo que não tem limites. Parece não existir uma ciência que diga que alguma dessas coisas tem qualquer importância. Mas parece que isso tem importância, ou o que quer que seja; é como se fosse preciso entrar em pânico por causa dessas coisas.
Lembro-me de estar dirigindo pela Interestadual 45 alguns meses atrás e, de repente, me dar conta do número de placas que gritavam para mim, placas querendo que eu comprasse colchões d’água, placas querendo que eu visse garotas tirando a roupa, placas querendo que eu comesse comida mexicana, cartazes giratórios iluminados querendo que eu fosse à Igreja, me inscrevesse em uma academia, visse aquele filme, financiasse um carro, mesmo se eu não tivesse dinheiro. E me chocou que, em meio a toda aquela balhureira, em meio às mensagens que diziam “compre este produto e seja completo”, eu mal conseguia conhecer a vida que a vida deveria ser.
Houston faz você achar que a vida se resume a pânico e a solução pra se livrar dele, nada mais. Ninguém pára para perguntar se realmente precisa de uma casa, de um carro ou de um emprego melhor. Por causa disso, parece nunca haver paz, não há serenidade. Já não podemos ver as estrelas em Houston, não podemos ir à praia sem pisar em uma garrafa de coca-cola, não podemos passear nos bosques porque já não há bosques. Só podemos entrar em pânico por causa das roupas que vestimos, pânico por causa dos carros que guiamos, ficar presos no trânsito e entrar em pânico pensando se o cara que nos corta nos respeitará ou não. Queremos matá-lo por gritar demais, e o tempo todo sentimos necessidade de novos móveis, de uma nova televisão e uma casa maior no bairro certo. Dirigimos em transe, salivando por Starbucks enquanto aquele grande céu se estende acima de nós, e aquela bela alvorada acontece no deserto, e todas aquelas montanhas a oeste estão reunindo neve nos seus pinheiros, e todas aquelas folhas estão mudando de cor a leste.
Deus, é tão bonito, é tão quieto, é tão perfeito. Faz com que você sinta, talvez por um segundo, que Paul tem o que não temos; que, quando você vive em uma Kombi e se levanta para o nascer do sol e cozinha sua própria comida em uma fogueira e pára de se preocupar se seu carro vai quebrar ou se tem roupas da moda ou se as pessoas gostam ou não de você, você rompe, tapa os ouvidos para o bombardeio de mentiras que nunca param de ser sussurradas ao seu ouvido. E talvez, por isso, ele pareça a mim tão diferente, porque se tornou um ser humano que já não acredita que os comerciais são verdadeiros – o que, talvez, um ser humano seja projetado para ser.
Faz sentido quando você pensa. Quer dizer, ficamos no deserto esta manhã, e a química em meu cérebro infiltrou-se suavemente na massa cinzenta, como se estivesse massageando com os dedos a parte mais tenra de minha mente, como se dissesse que isso é o que um ser humano deveria sentir. É para isso que existimos: para observar a beleza da luz ocupar a tela da Terra, para fazer o pó se tornar vida; como poeira encantada, criando árvores, e cactos e seres humanos a partir da mágica de sua propulsão. Isso agora faz com que eu me impressione com quão facilmente o cérebro pode ser enganado sobre o que deveria sentir, quão facilmente o cérebro pode ser enganado por alguém que tem um carro usado para vender, um novo perfume, sei lá.
"Você sentirá o que deveria sentir se comprar o que estou vendendo". Mas será que aquilo que eu e você deveríamos sentir, o que eu e você deveríamos ser, não custa nada? Paul parece pensar assim – ou, pelo menos, ele se comporta como se isso fosse verdade. Ele não quer ficar num quarto de hotel e saber das notícias. Não quer folhear as páginas de esporte para ter a certeza de que o time pelo qual torce está indo bem. Não acho que ele esteja querendo vencer nada. Acho que só está tentando sentir o que um ser humano deve sentir quando pára de acreditar em mentiras. E, talvez, quando uma pessoa deixa de aceitar as mentiras, quando um ser humano pára tempo suficiente para perceber que as coisas nas quais tentam fazer com que gastemos nosso dinheiro frequentemente não são verdade, podemos finalmente ver o nascer do sol, sentir a umidade da brisa do Golfo, ficar de pé maravilhado diante da tempestade impressionate proporcionada por um queda d’água de 6 mil metros e 16 quilômetros quadrados, se maravilhar com a física de um pato nadando sobre a superfície de um lago, desfrutar o reflexo do sol na superfície da lua e saber que é isso que preciso fazer, isso é o que sou, que a vida me está sendo dada como um presente, que a luz é uma metáfora e Deus está fazendo essas coisas para nos impressionar.

Mais um trecho do livro "Through painted deserts: light, God, and beauty on the open road".

Um comentário:

feppa disse...

E nos permitimos...nos atrevemos, mas em qual direção? Tanto fala-se de de fazer, de ser...e somos o que mesmo? Qualquer coisa que nos ocupe a mente...mesmo que aquela sensação zumbindo nos diga que há algo errado...mas tudo bem..relevamos.

Deveriamos , ou melhor....devo, parar para respirar o meu ar, comer o meu alimento, pisar na minha grama ou qualquer coisa similar que me faça...ou melhor que não faça....mal percebi mas já estou entrando no contexto ready-made das sensações...e voltando ao barulho mental que ocupa o lugar da "liberdade".

é...não é tão simples assim reaprender, ou aprender a ser real.